Por Marise Costa de Souza Duarte1
No início deste ano de 2018 visitei o Butão e a Índia2 , países próximos mas completamente diferentes, que me fizeram refletir sobre muitas coisas, seja no âmbito espiritual, emocional ou acadêmico.
Mais do que os templos, os dzongs (no Butão), os castelos e os fortes, locais de visita turística (a maioria, lindíssimos!), algumas coisas me chamaram bastante atenção nesses dois países, fortes impressões e constatações que me motivaram a escrever este texto, de modo a compartilhar um pouco dos meus insights adquiridos na viagem e registrar alguns (consequentes) questionamentos pessoais e acadêmicos.
O Butão, oficialmente denominado Reino do Butão, é um pequeno país (com aproximadamente 38.000 km², encravado entre a China e a Índia (na Cordilheira do Himalaia), que tem o Budismo como religião oficial e, segundo dados de 2017, uma população de apenas 802.000 habitantes (um pouco menos da cidade onde moro). Desde o final dos anos 2000 o país é uma Monarquia Constitucional, que decidiu se abrir ao turismo apenas nos anos 80 do século XX. Interessante observar que, embora não seja uma Monarquia Absoluta, o apreço ao rei e sua família fica visível em todos lugares (onde as fotos da família real são quase que obrigatórias).
Podemos também dizer que o Butão é o país das bandeirinhas coloridas (símbolo do Budismo), dos telhados verdes e azuis (que passamos a avistar assim que o avião inicia o pouso, após sobrevoar o Himalaia, uma das vistas mais lindas que já tive!!!), de um povo extremamente gentil e educado, e das lindas paisagens. Ainda pode se dizer que o Butão é um país onde a comida é muito saborosa e saudável, advinda do fato de que o país é predominantemente agrícola, não sendo utilizado agrotóxicos nas plantações. Além disso, visivelmente se observa no país a forte manutenção de sua cultura, principalmente na tradicional (mas, rotineira e predominante) vestimenta dos butaneses, o gho para os homens e a kira para as mulheres.
Interessante observar que o Butão é considerado um dos países menos desenvolvidos economicamente do mundo. Por outro lado, desde 1972 foi criado, pelo rei Jigme Singye Wangchuck, com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o índice de Felicidade Interna Bruta (FBI) que tem como pilares: a promoção de um desenvolvimento socioeconómico sustentável e igualitário, a preservação e a promoção dos valores culturais, a conservação do meio-ambiente natural e o estabelecimento de uma boa governança3 . Em suma, a integração do desenvolvimento material com o psicológico, cultural e espiritual e com harmonia com o meio ambiente.
Na minha visita ao pais, alguns fatos que presenciei indicam, de algum modo, evidências concretas da preocupação das pessoas e instituições com esses parâmetros. Quando, por exemplo, no nome de uma escola se insere o corpo, a mente e a linguagem (foto a esquerda); em um local de prática do arco e flexa (esporte nacional no Butão) uma placa diz que a saúde, bebida e cigarro não combinam com esporte no país (foto central) ou quando a preocupação com a vida animal se encontra estampada em uma atividade comunitária (foto a direita).
Em um primeiro momento, registro que a gentileza dos butaneses é uma coisa que nos toca profundamente; impressão que – acredito – tiveram todos as pessoas que já visitaram o Butão. Pessoas gentis, amáveis, solícitas e educadas são a regra no Butão. Por outro lado, também verificamos ali uma constante preocupação com o meio ambiente, seja nos locais pelos quais passamos, seja em manifestações de ações institucionais (como nas placas que encontramos ao longo dos caminhos que percorremos); além do fato de termos conhecimento de que mais da metade do território do país se constitui área ambientalmente protegida. Também é relevantíssimo destacar que no Butão são insignificantes os índices de violência, de analfabetismo e de fome e que não existem mendigos e moradores de rua.
Diante dessas impressões e constatações na minha visita ao Butão, logo me vieram as seguintes indagações. Qual a relação de tudo isso com o fato de mais de 90% da população seguir a religião budista? Qual a relação disso com o fato de não se registrar significantes desigualdades econômicas e sociais entre a população? Qual a relação disso com a alimentação dos butaneses? Qual a relação disso com a atribuição, por parte dos butaneses e seu governo, de enorme valor ao bem estar interior?
Saindo do Butão, fui para a Índia.
A Índia, país também asiático, de grande dimensão territorial e enorme população (a segunda maior do mundo), tem o Hinduísmo como a religião da maioria da população4 . O país se constitui uma República composta de 28 estados e sete territórios da União. Atualmente o país é uma das maiores economias do mundo (segundo os critérios de cálculo do Produto Interno Bruto – PIB), em franco processo de desenvolvimento econômico. Curioso registrar – e isso para mim ficou muito claro - que esse crescimento não vem se refletindo em melhoria de vida para a população, que permanece com altos níveis de pobreza, analfabetismo5 , violência de gênero, doenças e desnutrição.
Numa breve definição sobre a Índia (pelo menos, a partir da cidades que visitei, Delhi, Rishikesh, Agra e Varanasi), poderia dizer que, realmente, é um país de enormes contrastes: especialmente entre a sujeira e a limpeza; a pobreza e a riqueza; o lindo e o feio; a rudeza e a gentileza. Nessas cidades encontramos locais absolutamente limpos (principalmente nas regiões dos hotéis onde ficamos) contrastando com locais onde a sujeira e a desorganização são chocantes para os nossos padrões. Locais onde a riqueza e o luxo (privilégio de um grupo minoritário) revela o enorme contraste com a maciça pobreza da população. Situações onde os lindos monumentos e templos estão arrodeados de pedintes (de todas as idades) famintos e de triste aparência. Momentos onde a espiritualidade da população não se compatibiliza com a forma como os indianos tratam os ocidentais, principalmente as mulheres (que, desacompanhadas, estão sob constante perigo em determinados locais e horários) e nos momentos em que passamos pelas constantes revistas de segurança que ocorrem em quase todos os locais públicos e privados fechados (inclusive nos hotéis de luxo)6 .
Impossível não registrar que, na Índia, o som da buzina é quase uma “canção” permanente aos ouvidos. Ali o trânsito caótico (para nós, ocidentais) convive com a harmonia entre os motoristas (seja dos carros, motos, riquixas, tuk-tuk ou bicicletas), as vacas e as pessoas, que ordinariamente não se estressam (não se xingam, nem gritam uns com os outros nesse ambiente), e terminam se entendendo na prioridade de quem deve “passar primeiro”7 .
Nessa definição pessoal sobre a Índia se registra o fato de ser um país onde a devoção espiritual salta aos olhos, parecendo conviver harmonicamente com o milenar sistema de castas e com as gritantes e evidentes desigualdades sociais e econômicas; ainda que a Constituição da Índia tenha consagrado formalmente o princípio da isonomia, com obrigações estatais no sentido de igual proteção de todos dentro do território do pais, e não discriminação com base na religião, raça, casta, gênero ou local de nascimento8 .
Por outro lado, segundo a nossa percepção, o cuidado com o meio ambiente (especialmente o natural) parece não se constituir prioridade cotidiana da população em geral e dos governos; em que pese a forte relação entre o homem e a natureza presente no Direito Hindu9 . Para nós, ocidentais, e especialmente para aqueles que estudam o meio ambiente, é bastante curioso e triste ver que, ao mesmo tempo em que o Rio Ganges é tão adorado e venerado (inclusive como Deus, a Mãe Ganga) – o que revela, contudo, um traço de emocionante devoção por parte da população hindu - o mesmo se encontra tão poluído, trazendo em algumas partes de seu curso, na cidade de Varanasi por exemplo, graves problemas de saúde para a população10.
Buscando estudar um pouco essa (triste) realidade, encontramos a notícia de que, em 2017, o Tribunal Superior de Uttarakhand, Estado do norte do país, "ordenou outorgar ao Rio Ganges, ao Rio Yamuna e aos afluentes, o título de 'seres vivos'11 , para que os direitos desses rios fossem reconhecidos, inclusive sob a argumentação de que “embora reconhecido como uma mãe, o Rio Ganges está sendo descuidado”12 . Interessante observar que a declaração judicial do Tribunal indiano ocorreu uma semana após o Parlamento da Nova Zelândia ter concedido ao Rio Whanganui (venerado pelos maoris, na Ilha do Norte) o status de "pessoa jurídica"13 . Tais (relevantes) decisões se inserem no importante e novíssimo contexto internacional do debate sobre os Direitos da Natureza (que considera a Natureza como titular de direitos e, portanto, submetida à proteção obrigatória pelo Estado e sociedade)14 , inaugurado na Constituição do Equador (em 2008), seguido pela Constituição da Bolívia (2009) e pelo Projeto de Constituição da Islândia (em 2019)15 .
Com relação ao tratamento jurídico das questões ambientais pelos governos indianos, vale lembrar que, no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente é marcante a presença do país, vez que, desde 1972, o mesmo vem participando de diversas conferências internacionais promovidas pela ONU sobre meio ambiente, embora pontuando a responsabilidade diferenciada com relação à adoção de medidas de natureza ambiental por parte dos países em desenvolvimento16. Por outro lado, se verificam vários compromissos de proteção ao meio ambiente na política externa e regional indiana17, e no âmbito de seu Direito Interno, onde a proteção do meio ambiente está contida no texto da Constituição da Índia, sendo posta como direito fundamental (integrando, portanto, uma das dimensões do princípio da dignidade humana)18 . Ademais, em 2006, o Governo indiano instituiu sua Política Nacional do Meio Ambiente, com direcionamentos institucionais para o uso correto dos recursos naturais para o desenvolvimento econômico19.
Pesquisando medidas concretas referentes à proteção do ambiente na Índia, especialmente ao Rio Ganges20, verifico a existência de algumas ações como o Plano de Ação Ganga, uma iniciativa governamental para a despoluição daquele importante rio; que, no entanto, tem fracassado em razão da corrupção (também fortemente existente naquele país), da falta de conhecimentos técnicos, da ausência de um bom planejamento ambiental e da falta de apoio das autoridades religiosas.
Na mesma pesquisa também encontro uma notícia (de março de 2017) que registra que, segundo a Ministra de Recursos Hídricos indiana, Uma Bharti, o Rio Ganges estará limpo em 2018, antes das próximas eleições parlamentares. E, no dia seguinte ao retorno ao Brasil, também vejo a (feliz) notícia de que, em 2018, a Índia sediará as celebrações do Dia Mundial do Meio Ambiente, comemorado todo dia 5 de junho.
Em face dessas constatações e breves pesquisas, me surgiram inúmeras questões sobre a realidade que presenciei na Índia, dentre as que pontuo a seguir. Como se compatibilizar a proteção do meio ambiente (inegavelmente essencial à vida e à saúde humana) com algumas tradições espirituais e milenares do povo indiano? Quais as responsabilidades das tradições espirituais neste contexto? Especialmente considerando o índice de pobreza e analfabetismo da população? Como enfrentar as graves questões ambientais existentes na Índia diante desse gravíssimo quadro de pobreza e analfabetismo? Porque o grande e crescente desenvolvimento econômico da Índia não tem se revertido em favor do seu povo? Qual o papel da comunidade internacional nesse contexto, considerando que a segunda maior população do mundo está na Índia?
Como acadêmica, sei que essas não são questões simples e cada uma delas exigiria devidos estudos e aprofundamentos, mas diante de toda a riqueza espiritual de uma viagem que foi muito além do interesse turístico, e tendo visitado a Índia imediatamente após o Butão, duas perguntas vieram à minha garganta: o que o Butão pode ensinar à Índia ? O que o Butão e a Índia tem a nos ensinar?
Marise Costa de Souza Duarte
NOTAS
[1] Viajante e professora universitária.
[2] Agradeço, profundamente, à Lou Fernandes Viagens, que organizou o pacote para o Butão e à Escola Brasileira de Ciências Holísticas (EBCH), organizadora do Congresso da Felicidade, que, juntamente com a Lou Fernandes, organizaram a (maravilhosa) viagem à Índia.
[3] Como indicadores que medem o FIB estão: bem estar psicológico, uso do tempo, educação, cultura, boa governança, vitalidade comunitária, meio ambiente, padrão de vida e saúde. DUTRA, Denize. Felicidade Interna Bruta. http://alumniedex.fgv.br/blogs/carreiras/fib-felicidade-interna-bruta. Acesso em 28.2.2018.
[4] Embora outras tradições religiosas tenham presença no país, como budismo, o jainismo, o sikhismo e outras.
[5] Na Índia o ensino não é obrigatório.
[6] O que, contudo, sabemos que ocorre em razão da tensão política entre a Índia e o Paquistão e a China.
[7] Quando vemos esse quadro, imediatamente pensamos como isso ocorreria nas nossas cidades.
[8] Ver GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A Constituição da Índia. Jus.Com.Br. https://jus.com.br/artigos/10831/a-constituicao-da-india. Acesso em 2.3.2018.
[9] NEIVA, Micheline Mendonça. Proteção Constitucional do Meio Ambiente na Índia. Âmbito Jurídico. 2018. http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15644&revista_caderno=5. Acesso em 2.3.2018.
[10] Registra-se que no Rio Ganges o nível de bactérias fecais por 100 mililitros pode chegar a 31 milhões, quando o máximo recomendado para o banho é de 500 e para o consumo, zero; trazendo graves riscos de cólera, hepatite A, tifo, problemas gastrintestinais ou desinteria. https://g1.globo.com/natureza/noticia/justica-indiana-declara-rios-ganges-e-yamuna-seres-vivos-com-direitos.ghtml. Acesso em 28.2.2018
[11] Em razão de ação judicial promovida, em 2014, por um morador da cidade sagrada Haridwar (em Uttarakhand), por onde passam esses rios.
[12] https://g1.globo.com/natureza/noticia/justica-indiana-declara-rios-ganges-e-yamuna-seres-vivos-com-direitos.ghtml. Acesso em 28.2.2018
[13] https://g1.globo.com/natureza/noticia/nova-zelandia-concede-personalidade-juridica-a-rio-venerado-por-maoris.ghtml. Acesso em 28.2.2018.
[14] A esse respeito ver MELO, Milena Petters; BURCKHART, Thiago Rafael. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2016, vol. 8, n. 14, Jan.-Jun. p. 175-193.
[15] Esta, resultado de uma (elogiada) construção coletiva por parte da sociedade civil islandesa.
[16] Importante registrar que na Conferência de Estocolmo de 1972 (marco do debate internacional sobre a questão ambiental), no contexto da polarização entre os países do Norte e do Sul do Hemisfério, com relação a questões de desenvolvimento e proteção ao meio ambiente, a então Ministra Indira Gandhi manifestou-se no sentido de que a maior poluição da Índia era a pobreza. DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio Ambiente Sadio: Direito Fundamental em Crise, Juruá. Curitiba, 2005.
[17] A esse respeito ver DIAS, Denise Kobayashi; MIRANDA, Geraldo Henrique Romualdo de. Agenda de meio ambiente na Política Externa da Índia: análise da cooperação regional no Sul da Ásia (1985-2015) Sessão Temática: Comércio internacional, Globalização e Meio ambiente. XII Encontro da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica. 2017.
[18] Embora esse fato possa ser visto como influência do Direito ocidental, especialmente em razão da Declaração de Estocolmo de 1972 (NEIVA, 2018).
[19] DIAS; MIRANDA, 2017.
20] A energia deste rio em Rishikesh (local ele é limpíssimo) e o banho que ali tomei me marcaram profundamente e, certamente, por ele me interessei de modo mais direto.
REFERÊNCIAS
DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio Ambiente Sadio: Direito Fundamental em Crise, Juruá. Curitiba, 2005.
DUTRA, Denize. Felicidade Interna Bruta. http://alumniedex.fgv.br/blogs/carreiras/fib-felicidade-interna-bruta. Acesso em 28.2.2018.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A Constituição da Índia. Jus.Com.Br. https://jus.com.br/artigos/10831/a-constituicao-da-india. Acesso em 2.3.2018.
JUSTIÇA indiana declara rios ganges e yamuna seres vivos com direito. Disponível em https://g1.globo.com/natureza/noticia/justica-indiana-declara-rios-ganges-e-yamuna-seres-vivos-com-direitos.ghtml. Acesso em 28.2.2018
MELO, Milena Petters; BURCKHART, Thiago Rafael. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2016, vol. 8, n. 14, Jan.-Jun. p. 175-193.
NEIVA, Micheline Mendonça. Proteção Constitucional do Meio Ambiente na Índia. Âmbito Jurídico. 2018. http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15644&revista_caderno=5. Acesso em 2.3.2018.
NOVA Zelândia concede personalidade jurídica a rio venerado por maioris. https://g1.globo.com/natureza/noticia/nova-zelandia-concede-personalidade-juridica-a-rio-venerado-por-maoris.ghtml. Acesso em 28.2.2018.